José Afonso da Silva emite parecer contra prisão em segunda instância

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Às vésperas do julgamento do Habeas Corpus impetrado pela defesa do ex-presidente Lula contra a relativização da presunção de inocência, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal em 2016, foi juntada à ação o parecer do notório constitucionalista, Professor Livre-Docente de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo, José Afonso da Silva.

Autor de diversas obras sobre o tema, o professor condenou a decisão da corte sobre o tema. No documento, ele afirma que o Supremo deveria ter a grandeza de rever seu posicionamento, criticado no parecer por diversas frentes – veja as respostas aos quesitos no final.

O nonagenário autor, uma das maiores referências na área, iniciou dizendo que se parecer era por compromisso com a defesa da Constituição, uma vez que afirma não ser eleitor nem do ex-presidente, que ingressou com a ação, como do Partido dos Trabalhadores: “Não é usual abrir-se questão de ordem pessoal em pareceres que o parecerista oferece a seus consulentes. Neste caso, contudo, isso se me impõe para afastar do âmbito deste parecer qualquer conotação política. Não sou eleitor do consulente [Lula] nem de seu partido. O consulente aqui é, por assim dizer, um instrumento pelo qual exerço um dever impostergável, qual seja: a defesa da Constituição em face de um julgado de guardião”.

Dentre suas críticas, Silva rechaçou os argumentos levantados pelos ministros em comparar com outros sistemas jurídicos diferentes do aplicado no país. 

“Quero afirmar aqui, peremptoriamente, que não é razoável, nem justo, argumentar desse modo, trazendo à colação direito estrangeiro tão diferente do nosso. Não se comparam direitos ou instituições jurídicas diferentes, porque, “seja na micro ou na macrocomparação, a escolha do objeto a comparar há de fundamentar-se em critérios racionais, pois envolve a ideia da comparabilidade… [que é] um pressuposto básico da comparação jurídico constitucional, porque sem ela não tem cabimento. Não se comparam objetos incomparáveis”.

O constitucionalista criticou com veemência o argumento dos ministros no sentido de apontar o sistema recursal como entrave e usar tal argumentação para relativizar um princípio constitucional:

Lamentavelmente nenhum dos Ministros que votaram contra a inteireza do princípio da presunção de inocência apresentou qualquer sugestão no sentido de modificar o sistema de recursos e no sentido de buscar meios de acelerar os julgamentos criminais, muitas vezes deixando os réus mofando nas enxovias. Sem providenciar meios de sanar o mal pela raiz, quer fazê-lo pela rama, tolhendo direitos fundamentais. 

Nem uma palavra sobre a necessidade de uma profunda reforma do judiciário, que favoreça a celeridade processual, como, por exemplo, uma possível criação de um Superior Tribunal Administrativo, para decidir, em definitivo, como poder judiciário não como contencioso administrativo, as causas administrativas de interesse do Poder Público, ainda que admitido recurso extraordinário em função do controle de constitucionalidade. Uma reforma que descentralize a justiça estadual, justiça de mérito, criando Tribunal de Apelação ou que nome tenha, nas regiões administrativas dos Estados, enquanto os Tribunais de Justiças ficariam como tribunal de coordenação e harmonização, etc. Não o faz porque isso significaria reduzir poderes de certos órgãos judicial, inclusive do STF.

Para o professor, ainda é tempo da corte rever seu posicionamento. “A grandeza de um Tribunal não se perde quando, no cumprimento de sua missão constitucional, presta a sua jurisdição sem temor e sem concessão e não se sente apequenado pelo fato de rever sua posição em favor dos direitos fundamentais, a favor de quem quer que seja que lhe bata às portas. Um Tribunal só se diminui e perde credibilidade quando decide contra ela, qualquer que seja a motivação”, afirmou.

“Julgar contra a Constituição é um ônus que sempre há de pesar muito na consciência dos julgadores, mormente se forem integrantes de uma Corte Constitucional, por isso mesmo são sempre propensos a corrigir rumos”, afirmou José Afonso da Silva.

Ao final do documento, o professor sintetiza seu pensamento nas respostas aos quesitos perguntados pela defesa de Lula. Leia na íntegra:

Qual a extensão da garantia da presunção de inocência, contida no artigo 5º, LVII da Constituição?

José Afonso da Silva: O princípio ou garantia da presunção de inocência tem a extensão que lhe deu o inc. LVII do art. 5º da Constituição Federal, qual seja, até o trânsito em julgado da sentença condenatória. A execução da pena antes disso viola gravemente a Constituição num dos elementos fundamentais do Estado Democrático de Direito, que é um direito individual fundamental. 

“O momento no qual uma decisão torna-se imodificável é o do trânsito em julgado, que se opera quando o conteúdo daquilo que foi decidido fica ao abrigo de qualquer impugnação através de recurso, daí a sua consequente imutabilidade. Dá-se aí a preclusão máxima com a coisa julgada, antes da qual, por força do princípio da presunção de inocência, não se pode executar a pena nem definitiva nem provisoriamente, sob pena de infringência à Constituição.

A tese firmada pelo Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus nº 126.292/SP, qual seja “[A] Execução Provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio consitucional da presunção de inocência”, é compatível com o artigo 5º da Constituição?

Silva: Não. Indubitavelmente, não é compatível com o inc. LVII do art. 5º da Constituição a tese firmada pelo Supremo Tribunal Federal no HC 126. 292 de que “a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência”. É incompreensível como o grande Tribunal, que a Constituição erigiu em guardião da Constituição, dando-lhe a feição de uma Corte Constitucional, pôde emitir uma tal decisão em franco confronto com aquele dispositivo constitucional.

O Tribunal Regional da 4ª Região determinou, nos autos da Apelação Criminal (…) que o início do cumprimento da pena imposta a Lula deverá ocorrer imediatamente após o esgotamento da jurisdição daquela corte, e não a partir do trânsito em julgado do processo-crime. Esta determinação é compatível com o artigo 5º, LVII, da Constituição Federal?

Silva: Não. Não é compatível com o art. 5º, LVII da Constituição a determinação do Tribunal Regional da 4ª Região de se dar início o cumprimento da pena imposta a Lula imediatamente após o esgotamento da jurisdição daquela Corte, e não a partir do trânsito em julgado do processo-crime. O Tribunal cometeu grave inconstitucionaldede com essa determinação.

A ordem de execução provisória da pena de Lula, tendo sido decretada de ofício, limitando-se a mencionar entendimentos sumulares e precedentes do Supremo Tribunal Federal, e sendo a mesma, ante os elementos concretos da causa, desnecessária, é compatível com o artigo 5º, LVII da Constituição Federal?

Silva: Não. A ordem de execução provisória da pena imposta a Lula, decretada de ofício, limitando-se a mencionar entendimentos sumulares e precedentes do STF, e sendo a mesma, ante os elementos concretos da causa desnecessária, não é compatível com o art. 5º, LVII, da Constituição. 

O sistema de processo penal brasileiro, de acordo com a Constituição, se rege pelo princípio acusatório, no qual se exige que o juiz não pode agir de ofício, nem iudez sine auctor. E a execução é reconhecidamente um processo administrativo autônomo, por isso só pode ser iniciado quando devidamente provocado.

O contexto fático apresentado no Habeas Corpus n. 152.752/PR – revelando iminente possibilidade de execução da pena de Lula antes do trânsito em julgado de sua condenação criminal – constitui hipótese de flagrante constrangimento ilegal apta a afastar a incidência da Súmula 691/STF?

Silva: Sim, sem dúvida. O contexto fático apresentado no HC 152.752 – revelando iminente possibilidade de execução da pena de Lula antes do trânsito em julgado de sua condenação criminal – constitui-se em hipótese de flagrante constrangimento ilegal apta a afastar a incidência da Súmula 691/STF. 

Toda decisão ilegal ou inconstitucional de juiz ou Tribunal constitui constrangimento apto ao cabimento de um habeas corpus, para evitar a consumação da ação ilegal e constrangedora.

http://justificando.cartacapital.com.br/2018/04/02/referencia-no-stf-jose-afonso-da-silva-emite-parecer-contra-prisao-em-segunda-instancia/


Publicado em: 26/02/18